03 de Dezembro de 2024

OPINIÃO Sexta-feira, 12 de Maio de 2023, 10:22 - A | A

As Festas em Cuiabá

neila barreto

Neila Barreto

Os portugueses trouxeram para a Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, ainda no período colonial, duas importantes manifestações culturais: a Cavalhada e a Tourada. Elas foram inicialmente realizadas no local onde está o Jardim Alencastro. Era um amplo espaço largo que fazia parte do limite urbano da primeira Vila real criada pela Coroa Portuguesa a Oeste do Tratado de Tordesilhas. A Cavalhada chegou primeiro, ainda no Século XVIII, mas as Touradas tiveram a preferência dos cuiabanos, a partir de 1805, ainda no antigo largo.

Devido à compra de um casarão pelo capitão-general Francisco de Paula Magessi Tavares de Carvalho, em 1819, para ali instalar o Palácio do Governo da Capitania de Mato Grosso, as corridas de touro foram transferidas para um largo "mais afastado", o atual Jardim Ipiranga, e ali permaneceram até 1876, quando se mudaram para o antigo Campo D'Ourique, na depois Praça Moreira Cabral, onde hoje se encontra o atual Palácio Filinto Müller, sede da Câmara Municipal de Cuiabá. A última Tourada em Cuiabá foi na Festa de São Benedito em 1936, por decisão do governador Mário Corrêa da Costa, para atender aos que não aceitavam o "sofrimento" dos touros.

A Cavalhada, porém, rompeu os séculos e hoje é exemplo da tradição mato-grossense. A primeira delas ocorreu em 20/07/1769, conforme é citado nas "Crônicas do Cuiabá", de Joaquim da Costa Siqueira, para comemorar a chegada do capitão-general Luís Pinto de Souza Coutinho (de 03/01/1769 a 13/12/1772). Durante três dias, nelas "concorreram as pessoas da primeira nobreza da terra". As primeiras Cavalhadas eram "torneios hípicos que outrora constituíam uma das populares festas muito ao sabor do povo em Mato Grosso, notadamente em Poconé e São Luís de Cáceres". Eram realizadas no final das Festas do Divino.

Conforme o historiador e cronista Firmo Rodrigues: "Embora menos apreciada que as corridas de touros, a Cavalhada foi uma diversão popular que não se encontrará nos modernos hipódromos. Ela conservou algo das lutas medievais, naturalmente esboçadas pelos povoadores de Mato Grosso, que conduziram até nós traços e vestígios dos celebrados torneios que o feudalismo desenvolveu. Entre nós, tomaram a forma de representação campal da lendária guerra de Tróia, confundida com as lutas religiosas das Cruzadas caracterizadas pelas guerras de mouros e cristãos".

O cenário era igual ao da Tourada, conforme o historiador Firmo Rodrigues: "Tinha o improvisado prado a forma de um retângulo, cujos lados maiores eram tomados de vistosos palanques; inscrito ao retângulo era traçada uma circunferência a rastro de cal. Por fora da praça viam-se inúmeras tendas ou botequins. A uma hora da tarde já os palanques repletos de espectadores, ostentando as famílias um certo rigor no traje. Por baixo dos palanques, aproveitando a sombra que projetavam, apinhava-se a massa popular que esperava ansiosa a chegada dos cavaleiros".

"Uma banda de música dava o sinal de iniciar o folguedo, executando uma composição simples, ingênua, que se dizia o "Hino do Divino" e pouco depois entrava na praça os cavaleiros ao som de uma entusiástica marcha. Vinham sempre em número par, 16 até 24, ostentando airosamente vistosos trajes de cetim encarnado e azul e chapéu preto adornado de plumas das mesmas cores; à cinta traziam a espada e nos coldres as pistolas. Os pajens, pequenos moleques que os acompanhavam a pé, conduziam as lanças. Ali viam-se os moços da melhor sociedade, conhecidos como os mais destros cavaleiros e os mais belos espécimes de cavalos ajaezados com capricho".

"Tinha início o torneio pelo assalto a um castelo, de bambu e alvo morim, armado a um canto da praça; de lá era retirada uma menina e o castelo incendiado: era o rapto de Helena, lenda tão magistralmente descrita pelo cantor de Ilíada. Do rapto de Helena, por um salto que só o teatro pode dar, passava-se a uma luta entre mouros e cristãos que assim se dividiam; na pista circular iam os cavaleiros, um a um, dois a dois, terçar golpes de lanças, espadas e disparos de pistolas que se tornavam reais sobre quatro cabeças de massa espetadas em estacas simetricamente plantadas. A estas escaramuças, que se faziam ao ritmo de tambor e cornetas, seguiam outros jogos, tais como os do limão, que constituíam em páreos de dois cavaleiros que durante a vertiginosa carreira alvejavam-se com limões".

Finalmente, havia o jogo de argolinha, que o historiador Firmo Rodrigues assim descreve: "No extremo de uma raia, em linha reta, erguiam dois metros ligados por um fio de arame à altura da ponta da lança de um cavaleiro. Do centro deste fio pendia uma argola: cada cavaleiro devia tira-la com a ponta da lança ao passar em carreira rápida. Os poucos que o conseguiam fazer eram aclamados pela assistência e recebiam no palanque do festeiro, não louros, mas uma argolinha de prata, atada à ponta de vistosa e longa fita de seda. Às seis horas da tarde punha-se remate à festa da Cavalhada, que foi cedo suplantada entre nós pelas corridas de touros, brutais e sem arte, mas que, infelizmente, agradavam mais ao povo". O historiador Rubens de Mendonça disse que existiram, também, argolinhas de ouro, lembrando que a avó dele tinha uma delas.

A Cavalhada foi preservada em Poconé, incluindo baile dos cavaleiros, festa de iluminação, espetáculo pirotécnico e apresentações de dança dos mascarados, siriri e cururu, além de atrações populares. De 1956 a 1990 a Cavalhada ficou esquecida, mas em 1991 o povo poconeano decidiu restabelecer a tradição. Nas duas únicas cidades do Brasil que preservaram a Cavalhada (Poconé, em Mato Grosso, e Pirenópolis, em Goiás) cavaleiros e pajens voltaram a usar suas vestimentas e adereços, vistosos e coloridos, montados em cavalos da melhor qualidade, enfeitados de plumas e fitas, que entram no prado para travar "lutas", trotando ao repique da "caixa" e ao tilintar dos guizos. Os dois grupos participantes são compostos de 12 cavaleiros cada um. Voltamos, assim, a um passado que não deve ser esquecido, pois há algo de todos nós nessa soma de valores e costumes que caracterizam o nosso povo ao longo de quase três séculos de História.

(*) NEILA BARRETO é jornalista, historiadora e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso.

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