06 de Dezembro de 2024

OPINIÃO Sexta-feira, 10 de Fevereiro de 2023, 11:15 - A | A

Feminicídio em Mato Grosso e a banalização do mal

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Em 1797, na Vila Real do Bom Jesus de Cuiabá, Dona Maria Bernarda Poupino, esposa de Francisco de Paula Azevedo, acusou na Justiça seu marido de maus-tratos e “sevícias” e ainda, que o mesmo prometeu matá-la com faca ou veneno, requerendo, por isso, seu divórcio. Mas Bernarda perdeu a causa “por falta de provas”, e foi condenada a pagar as custas do processo e retornar para a companhia de seu marido ou ir para a cadeia pública.

Rondonópolis, setembro de 2022, Miriam Alves de Oliveira, 25, foi buscar a filha na casa do ex-companheiro, no bairro Ezequiel Ramin, na ocasião, seu ex, Juliano pediu para que ela fosse até seu quarto para conversarem, momento em que efetuou 3 disparos com arma de fogo na sua cabeça e a vítima veio a óbito no local na frente de sua filha menor de idade.

As notícias de violência contra as mulheres atravessam os anos, sem mudar os requintes de crueldade, a diferença, além do tempo transcorrido é a nossa reação diante dos fatos seja de indignação, de aceitação ou silêncio.

Mato Grosso ocupa a lamentável posição de terceiro lugar nesse ranking nacional de violência e o Brasil está na quinta posição mundial. A mensuração dos índices de violência contra mulher no mundo é obtido pela soma da quantidade de feminicídios cometidos.

De 2021 para 2022, segundo dados oficiais parciais da Coordenadoria de Estatística e Análise Criminal – CEAC/SAI/SESP, houve um aumento importante de 14% nos casos de feminicídio em relação ao ano retrasado 2021, aumentaram de 375 mortes  para 428 no Estado.

Transcorridos mais de 132 anos da Proclamação da República não fomos capazes de romper com os laços culturais que nos formaram socialmente, heranças de um patriarcado lusitano

A crueldade é apresentada nas taxas de 47% dos crimes que aconteceram na própria residência da vítima, 27% por violência doméstica; 47% desses criminosos usaram armas de fogo para assassinar suas vítimas e 29% armas brancas.

Os criminosos, em sua maioria, são os próprios companheiros e ex-companheiros de relacionamentos afetivos e em 36% dos casos os assassinos possuem escolaridade precária de Ensino Fundamental e Médio. Esse dado demonstra as consequências. 

Foram registrados nesse mesmo período 7.156 casos de acolhimentos nas Casas de Amparo e a instalação de 3.769 botões de pânico.

No momento em que você lê esse artigo temos aproximadamente 10 mil mulheres recebem alguma proteção da Justiça ou da ação social do Estado, por correrem risco de vida. Essa imagem me faz lembrar os refugiados de guerra em abrigos humanitários pelo mundo afora.

Os números apresentados acima podem ser até mais alarmantes e assustadores do que supomos se considerarmos que muitos casos de ameaças e agressões (não contabilizados nas estatísticas apresentadas) sequer viram registros oficiais porque são silenciados pelas vítimas por medo, vergonha ou dependência econômica.

É certo que houve muitos avanços na área de segurança do Estado, mas foram insuficientes para conter esse aumento do feminicídio, até porque a violência na sociedade brasileira tem raízes culturais mais profundas e sua erradicação não depende apenas do aparato de  repressão e amparo das vítimas, é preciso que através da educação esses limites se tornem valores civilizatórios.

Desde o Brasil Colônia, mulheres indígenas e negras escravizadas foram estupradas nos cativeiros e aldeias. Eram “pegadas a laço” ou assassinadas pelos seus maridos em “legítima defesa da honra” masculina como se dizia, vítimas de uma estúpida herança patriarcal violenta e escravocrata que até podia não assustar  em sua época pois era o costume que se tinha, mas deve nos assombrar na atualidade.

Sob a suposta alegação de clamor por justiça, tornou-se comum ver imagens e notícias de feminicídios compartilhados em redes sociais e nos programas de TV e em menor escala se vê a divulgação dos canais de combate à violência e ações educativas para o convívio social pacífico nas famílias.

O gosto por esse tipo de notícias de uma imprensa marrom revela uma intenção sádica de muitos brasileiros que por assim dizer se deleita com as desgraças alheias, no estilo “morreu, antes ele do que eu!”. E assim, vamos acostumando e naturalizando a cultura da violência em geral contra as mulheres sem uma maior reflexão enquanto fenômeno social.

A filósofa Hanah Arendt chamou essas características de frieza e indiferença humana a dor alheia como a origem do mal no livro clássico: “Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal” e Sigmund Freud chamou do Espírito de Thanatos ou de pulsão da morte que nos habita.

Quando uma mulher é assassinada e vira uma estatística, todos nós morremos um pouco juntos, enquanto povo, nação, morre a escola, a saúde a justiça e a República também. Transcorridos mais de 132 anos da Proclamação da República não fomos capazes de romper com os laços culturais que nos formaram socialmente, heranças de um patriarcado lusitano.

Espero que o filósofo  Jean Jack Rosseau esteja certo na sua tese do mito do bom selvagem quando afirmou que o homem (nesse caso me refiro ao gênero)  nasce bom, mas o meio o corrompe, para poder sonhar com o dia em que a educação de qualidade, e não somente os presídios,  possam mudar essa realidade.

Diz o documento do processo crime disponível no Arquivo de Mato Grosso que Dona Maria Bernarda “de sua livre vontade escolheu o que queria, dizendo que era seu gosto que todo o povo soubesse, que preferia antes viver na cadeia, que em casa de seu marido. Sendo assim, foi conduzida pelo alcaide para a cadeia publica desta Villa de Cuiabá”.

Suelme Fernandes é mestre em História e articulista político



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