26 de Outubro de 2024

OPINIÃO Sábado, 03 de Dezembro de 2022, 07:07 - A | A

Cacimba de Leite

Um Patrimônio a ser preservado

neila barreto

Neila Barreto

O arraial e a vila do Cuiabá foram construídos no processo de invasão de territórios indígenas: (...) onde começou o que é hoje a cidade de Cuiabá, era "uma grande aldeia". Lugar "coberto de mato", com "grandiosos arvoredos". Onde passava um córrego, depois chamado “Prainha”. Na margem esquerda do córrego, "morros" escarpados; na direita, suaves "colinas" (...), conforme o historiador Carlos Rosa.

Pelo menos desde a segunda metade do século XVIII algumas residências do centro da Vila Real do Bom Jesus do Cuiabá dispunham de acesso privado a mananciais de água potável. Inventários pós morte, relatórios policiais, processos judiciais e alguma documentação iconográfica demonstram claramente a existência de muitos poços nos quintais das “casas de morada” ou das “casas de residência”.

Era o caso, por exemplo, da casa de Joaquim Lopes Poupino: (...) uma propriedade de casas de sobrado sitas na Rua de Baixo, com quatro janelas por cima com suas sacadas duas e duas de rótulas e mais uma sem rótula na frente e casas por baixo com janelas e portas, seu quintal, cozinha e poço (...), conforme documento encontrado no Arquivo Público de Mato Grosso. Ou a casa de Manoel Rodovalho e Silva do início do século XIX, com “cozinha e quintal de vários arvoredos de espinhos e outras diversas qualidades (...) com seu poço”. Ou, ainda, a casa de Joaquim Xavier da Costa Vale, que na “Rua Direita de Baixo” tinha casa com “cozinha e poço e seu quintal” Ou a do Alferes Roque da Costa Faria, “no pátio da Matriz”, com seu “meio poço”. Ou, já em 1822, Salvador Gonçalves da Cruz, com casa “no largo do Palácio com os fundos para a Rua do Meio”, “com seu poço”.

Embora não seja ainda possível quantificar o número de propriedades residenciais da Vila Real providas com poços, os indícios encontrados até agora levam a crer que no centro da vila esse tipo de acesso particular à água potável era mais frequente. Por um lado, porque vários dos moradores do centro da vila tinham maiores recursos para pagar a feitura desses poços; por outro lado, porque certamente os poços valorizavam as “moradas de casas” e seus proprietários.

A Cacimba de Leite, hoje existente, é uma dessas fontes naturais de água e está localizada à rua Professor João Pereira Leite número 621, em uma oficina mecânica de propriedade Sr. Antônio Pires, viúvo da dona Maria Celina da Silva, a Fiita, primeira moradora do local. Em 1988, dona Fiita comprou a área de outros herdeiros da família e para limpar o poço dessa área, usou uma bomba de sucção para limpar o fundo da Cacimba, que provavelmente está situada sobre uma mina cujo nível de água dento da Cacimba nunca baixa, mesmo na época da estiagem, a qual segundo o engenheiro Noé Rafael da Silva – ex diretor da Sanemat está localizada nas coordenadas geográficas 15°35’06”S 56°05’29”W, no bairro Araés, na capital.

Segundo Rafael da Silva, esta Cacimba está revestida com tijolo queimado tem 1,05m de diâmetro e 13,0m de profundidade mantendo sempre 10,0m de lâmina de água, perfazendo 8,65metros cúbicos, volume este que é reposto pela mina em 6horas. Desta forma, a vazão dessa fonte é de 0,40 litros por segundo.

Chamada de “servidão do povo”, na época era o nome que se dava a todas as fontes onde a população se servia da água para beber, cozinhar, tomar banho, lavar roupa, etc.; muitas das quais foram canalizadas ou aterradas com a chegada do asfalto em Cuiabá. A Cacimba de Leite tem serventia até hoje, mas está em desuso devido a disponibilidade de água encanada, bem como, a ausência de coletor público de esgoto no bairro, que sem dúvida, está contaminando a água desta Cacimba. 

Para dona Bartolina Alvez da Silva, 84 anos, moradora   da rua Ministro João Alberto 35, próximo da mina, o nome Cacimba de Leite foi dado devido ao aspecto leitoso da água dessa Cacimba onde ela pegava água para uso doméstico.

Antigos moradores do bairro também contam um fantasioso caso, que um rapaz naquela época, uma noite escura, ao passar nas proximidades dessa cacimba, ouviu o choro de um bebê, vindo de dentro de uma choupana, aparentemente abandonada. Logo ele entrou na choupana e viu deitado no chão, sobre uns panos velhos, um bebê de uns dois anos, com o rosto encostado na parede. Assim que ele aproximou do bebê, o choro transformou-se num largo sorriso, exibindo um dentão na boca. Com o susto, o rapaz saiu em disparada, em direção a cacimba de leite. Assim que ele   chegou na Cacimba, com muita sede, deparou com um jovem pegando água em uma vasilha. Enquanto o rapaz esperava a sua vez de se servir, foi contando para o jovem, que estava de costas, a história do dentão. O jovem pegou nas alças de sua vasilha para ir embora e ao virar-se para o recém-chegado, deu uma gargalhada, perguntando: “O dente do bebê era igual esse aqui? ” Exibindo um dentão digno de assustar qualquer pessoa. O rapaz deu um grito de pavor, e o jovem sumiu na escuridão da noite e nunca mais foi visto em Cuiabá, causos de cuiabanos e suas histórias.

Esses recursos hídricos, por muitos anos, foram usados para o lançamento indevido de esgoto doméstico do bairro. Na administração do prefeito Manoel Antônio Rodrigues Palma, (1975/79), por meio do Projeto Cura, estes córregos foram canalizados desaguando-os no Córrego da Prainha e com isso, a água que transbordava da mina da “Cacimba de leite” foi canalizada para o córrego do General e a fonte interditada, informa o engenheiro Noé Rafael da Silva.

Para Rafael da Silva é impossível recuperar a área de Área de Proteção Ambiental – APP, em especial a área da nascente do córrego do General e córrego do Sargento Manoelzinho pois estão totalmente antropizadas.

A Cacimba de Leite, por muitos anos serviu como fonte de abastecimento de água do bairro Araés, assim como outras fontes naturais de água da cidade de Cuiabá. Considerando, que a Cacimba de Leite está preservada e a sua fonte natural não secou, simbolizando a existência desses recursos hídricos abundantes na formação de Cuiabá, sugerimos um projeto de lei propondo o tombamento da fonte como patrimônio histórico do município de Cuiabá ou então uma visitação da superintendência de patrimônio histórico da Secretaria de Estado de Cultura, Esportes e Lazer - SECEL, para avaliação do patrimônio existente, e o seu posterior tombamento.

(*) NEILA BARRETO é Jornalista. Mestre em História. Membro da AML e atual presidente do IHGMT.

Os artigos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião do site de notícias www.aimprensadecuiaba.com.br



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