06 de Dezembro de 2024

CULTURA Sexta-feira, 17 de Novembro de 2023, 16:51 - A | A

ENTREVISTA

"Nunca houve política para valorizar autores de MT em livrarias"

Presidente da Academia Mato-grossense de Letras, Luciene falou sobre a falta de mercado para escritores mato-grossenses

Vitoria Gomes - Midia News

luciene carvalho aml

 presidente da Academia Mato-grossense de Letras, a escritora Luciene Carvalho

Empossada há uma semana como presidente da Academia Mato-grossense de Letras, a escritora Luciene Carvalho avalia que a excassez de livrarias em Cuiabá e outras cidades do Estado não é prejudicial para escritores regionais. Segundo ela, as grandes empresas nunca valorizaram os livros de autores mato-grossenses. 

"A gente nunca tinha vitrine, visibilidade. Nunca houve uma política de valoração dos autores mato-grossenses nas livrarias, que ganhavam dinheiro aqui. Então, a literatura feita aqui nunca recebeu investimento", disse em entrevista ao MidiaNews. 

Luciene, que vive há mais de 20 anos dos lucros suas produções literárias, falou sobre a inexistência de um mercado para escritores no Estado e apontou a falta de interesse da sociedade em consumir livros como um dos fatores que levou a esse cenário. 

"É uma decisão do povo brasileiro, sair do alienamento e entender que ele é responsável também, nem tudo é o Governo, é uma questão cultural. Enquanto o brasileiro valorizar mais o celular que o e-book, mais a blusinha que o livro, mais o rolê que o conto, não vai vender", disse.

A poetisa que enfrentou um árduo caminho até chegar a posição de presidente da Academia também relatou percaussos durante o tempo em que lutou para que seus livros fossem vistos e lidos. 

Confira os principais trechos da entrevista:

 MidiaNews - Em Cuiabá, não existem mais livrarias físicas nos shoppings da cidade. Isso é prejudicial para a literatura? 

Luciene Carvalho - Não. Eu sou alguém que acredita muito no progresso das feiras e tenho visto elas crescerem em Mato Grosso. Porque para os autores mato-grossenses as livrarias propunham 50% do valor de capa para a livraria, então já há tanta dificuldade para ter o recurso e na hora que faz um livro, você vende ele a R$ 40, mas acabava que o autor ficava com R$ 20. 

E mais, a gente nunca tinha vitrine, visibilidade. Nunca houve uma política de valoração dos autores mato-grossenses nas livrarias, que ganhavam dinheiro aqui. Então, a literatura feita aqui nunca recebeu investimento e agora a gente tem editoras e iniciativas pessoais. 

Acredito que Mato Grosso é vocacionado para feiras. Essas feiras ocorrem episodicamente e agora existe o desejo de criar um evento em Mato Grosso que supra essa lacuna. 

MidiaNews - Como é para quem quer publicar um livro em Mato Grosso atualmente? É rentável para o autor ou autora?

Não acho que o livro de papel vai morrer, porque acho que existe uma autonomia. O livro é uma mídia que nenhuma outra alcança

Luciene Carvalho - Falando de um nível pessoal, comecei a viver de literatura em 2001. Eu sou uma vendedora de livros, faço meus livros com dinheiro público ou investimento de editoras, o que é um avanço imenso para Mato Grosso. E eu vendo livros. As pessoas procuram ou pela causa, pelo tema, pelo show ou porque percebem que ali tem uma mulher que tomou a decisão de fazer da literatura um espaço. 

Agora quando a literatura é só uma realização de um sonho, é feita por pessoas de um nível que elas dependem dos livros para pagar seus boletos, não cabe as meninas negras. 

Nós meninas negras não temos herança, temos urgência. Se a gente investe em estudo, precisa trabalhar em coisas que tragam resultados, não temos uma estabilidade, um conforto para passar 5, 10 anos investindo na carreira. A mulher negra precisa entrar rapidamente no mercado, porque ela precisa ajudar a construir um projeto de família autossustentável. 

Isso é um processo cruel ainda em Mato Grosso, porque se a literatura não rende dinheiro ela vai ficar restrita à narrativa de uma só classe, porque aqueles que precisam e tem urgência não tem tempo de se dedicar. 

A literatura brasileira feita em Mato Grosso é muito boa, mas não é profissionalizada, ai as pessoas realizam sonhos. 

MidiaNews - Como é o mercado literário em Mato Grosso e Cuiabá? 

Luciene Carvalho - Mato Grosso não tem mercado, o que tem são as inúmeras faculdades de Letras comprando, mas não tem mercado. A Educação não compra livros mato-grossenses. Tem recursos para comprar livros, mas eles não adquirem. 

Eu sonho pelo dia em que for lançado um livro de literatura mato-grossense e as pessoas fiquem animadas para se vestir e ir para o lançamento “porque eu preciso ler”, igualzinho a gente em lançamentos de cinema. Tenho esperança em ver isso. 

Eu acredito que o mercado literário mato-grossense vai se constituir. 

MidiaNews - O que falta para esse mercado ganhar vida? 

Luciene Carvalho - Mídia. A hora que vocês decidirem que a literatura vai bombar, ela vai. Cada jornalista, cada comunicador de Mato Grosso é papel definidor sobre endossar, fomentar e divulgar. 

MidiaNews - Tirando a experiência própria e analisando esse cenário, é possível realmente viver da literatura nessa realidade? 

Luciene Carvalho - Eu só consegui porque não dei ouvidos quando falaram que não tinha como. Acho que não se pode acreditar que não vai dar certo, porque o impossível é só a véspera. Acredito que a gente precisa tentar, perder o medo do fracasso. 

MidiaNews - A senhora acredita que essa falta de mercado também é um fatores que inibe a adesão à literatura? 

Luciene Carvalho - Acho que o leitor se acomodou com o fato e acha que livro tem que ser subsidiado. Você compra uma blusa de R$ 50, mas não vai comprar um livro de R$ 28. Então não é caro, é uma questão de escolha e só vai mudar quando o formador de opinião mostrar isso. 

É uma decisão do povo brasileiro, sair do alienamento e entender que ele é responsável também, nem tudo é o Governo, é uma questão cultural. Enquanto o brasileiro valorizar mais o celular que o e-book, mais a blusinha que o livro, mais o rolê que o conto, não vai vender. 

MidiaNews - A senhora tem projetos para mudar essa realidade? 

Luciene Carvalho - A gente pode conversar sobre projetos, mas eu não sou uma presidente única, todas as questões passam por uma Mesa Diretora, um conselho fiscal e um editoral. 

Estou cercada de pessoas talentosas que estarão comigo nesses dois anos e estarão comigo para que nós possamos construir um novo momento do fomento, de cotidiano e de diálogo. 

MidiaNews - A senhora acredita que um escritor ou uma escritora que quer viver apenas da literatura em Mato Grosso corre o risco de passar fome? 

Luciene Carvalho - Acho que tem um perigo muito sério da autoreferência. Por vezes, vejo pessoas que não permitem que o mercado da crítica, da mídia, devolva para eles a questão do talento, da vocação, do aprimoramento. Percebo, por vezes, que a pessoa faz um ou dois poemas e se diz poeta. 

Ele precisa entender que precisa passar pelo crivo do mercado, da crítica. Eu demorei muito tempo até ter confiança, consistência e consciência de que poderia fazer poesia. 

É preciso saber se vender, é produto, não é bondade. Passa fome sim, se vai vender coisa ruim que o outro não quer comprar, como vai viver? 

MidiaNews - Os jovens crescem muito estimulados pelo celular. Não acha que isso atrapalha a descoberta do prazer da leitura de um livro? 

Luciene Carvalho - Em tempos de internet, a gente tem que pensar a dialética da coisa. Penso que uma geração que se expressa em rede social não pode ser entendida apenas como leitora, mas como potencialmente escritora. 

Em tempos de redes sociais, se eu não transformar a minha relação com o leitor, se não entender que o meu leitor é protagonista da leitura, não vou estar alcançando o máximo que posso.

 

MidiaNews - Mas a senhora não acredita que essas novas mídias podem roubar um pouco de público?

 

Luciene Carvalho - Tudo se divide no tempo e no que você faz nesse tempo. Aprendi muito cedo que leitura é questão de hábito, está tudo muito transferido para a escola. Eu gosto de ler porque minha mãe lia, que via meu pai, minha irmã e meu irmão lendo, coisas que nem sempre eram grande literatura, mas o hábito passeava diante dos meus olhos. 

A criança, o adolescente vai ver esse hábito nos pais do Brasil? Não, então é transferido para a escola. Acho que como política pública de fato vai chegar um momento que o audiovisual, os aplicativos, vão mostrar pessoas lendo e tem que cotidianizar, nas TVs, na internet, nos filmes brasileiros, porque já não dá tempo para as famílias criarem esse hábito. 

Precisamos do audiovisual para mostrar a leitura como um hábito, porque somos filhos da tecnologia. A Malhação não influenciou uma juventude inteira? As séries não estão influenciando? É disso que estou falando. 

MidiaNews - Acha que os livros digitais substituem os físicos a contento? 

Luciene Carvalho - Não acho que o livro de papel vai morrer, porque acho que existe uma autonomia. O livro é uma mídia que nenhuma outra alcança, você não tem que recarregá-la, não depende de bateria, o livro em si é uma produção para universos. Não acredito que morra. 

MidiaNews - A senhora vê nas escolas esse incentivo à leitura entre os mais jovens? 

Luciene Carvalho - Sim. Eu gostaria, inclusive, que outras idades fossem entusiasmada para leitura. Por exemplo, acho que devíamos ter um projeto para a terceira idade, porque é quando a pessoa já deu tanto de si que tem o direito de usufruir de leituras. Leituras que incluam questões pertinentes a essa idade. 

Porém, a realidade é que encontramos muito mais leitores naqueles que estão em idade escolar e a escola é uma grande aliada da literatura no nosso Estado. Agora, acho importante que o Estado e os municípios adquiram livros de autores mato-grossenses, até por empatia. 

MidiaNews - Qual a avaliação a senhora faz da política cultural do Governo Mauro Mendes? 

Isso é um processo cruel ainda em Mato Grosso, porque se a literatura não rende dinheiro ela vai ficar restrita à narrativa de uma só classe
Luciene Carvalho - Esse Governo é comovente, porque a Secretaria de Cultura tem um núcleo de pessoas que tem o trabalho continuado. 

Vejo que existe uma máquina que se move, as prefeituras garantindo a cozinha do dia a dia, existe um Estado que tomou partido e definiu que cultura talvez fosse a única parte do dinheiro público a fazer transformação, a inserir mesmo. A pegar gente que saiu da cadeia para trabalhar. 

Tem um edital agora que é até para pessoas em situação de rua, então acontece e tem acontecido políticas públicas interessantes na forma como se estrutura. Eu creio que Mato Grosso avançou incrivelmente no pós-pandêmico, porque quando tudo mais era medo, a arte a cultura nunca desampararam as pessoas. Os livros, as músicas, as cênicas, o audiovisual, salvou demais. 

MidiaNews - Qual seu projeto prioritário para a Academia Mato-Grossense de Letras? 

Luciene Carvalho - Uma das questões que acho mais relevantes é a natureza estadual da academia. Estamos em Cuiabá, mas somos mato-grossenses e como tal temos que estar mais próximos dos municípios, da população. 

Não dá pra fomentar o fazer literário em um Estado de dimensões tão grandes ficando só aqui. Acredito que a literatura pode ser território de síntese da identidade cultural desse novo Mato Grosso. Desse Estado que recebe uma ocupação diferenciada nos últimos 40 anos. Fomentar a literatura é uma forma de dar visibilidade e materialidade a essa identidade. 

Por isso, acho importante que sigamos em direção às cidades, à população, fomentando a literatura. 

E não é uma academia de uma presidente, são 40 pessoas, acho que importa que eles caibam pelo menos em rede social. Então tenho interesse de gravar todos os que quiserem participar e que eles estejam nesse novo momento de rede social e que mostre para a população quem são esses intelectuais e as suas produções. Tem produção consistente na literatura brasileira e de Mato Grosso.



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