Berço econômico e político de Cuiabá, as construções do Largo do Rosário são o retrato dos 304 anos de história da Capital. Foi ali que em 1719 o bandeirante Miguel Sutil encontrou as minas de ouro do Morro da Luz e deu origem à cidade. Com o passar dos anos, a região foi marcada pelas cicatrizes do tempo e do abandono. Seus casarões, praças, becos, morros e ruas porém, continuam contando a história da construção da identidade do povo cuiabano.
Às vésperas do aniversário de Cuiabá, Antonieta Luisa Costa, Marry e Armando Omais compartilham como essa história é, também, a deles.
Antonieta é fundadora do Instituto de Mulheres Pretas (Imune) hoje instalado num casarão na Praça Conde Azambuja, a Praça da Mandioca. A professora recebeu a reportagem com uma palavra recorrente: memória. Sem ela, segundo Antonieta, o povo morre. Não no sentido literal, mas da identidade, nessa caso, da cuiabania.
A violência, vandalismo e abandono que amargam o Largo do Rosário ilustram o que a presidente do Imune defende: sem memória, a identidade do povo se deteriora. Por outro lado, a Casa das Pretas, braço cultural do Imune na Praça da Mandioca, faz o movimento contrário: o resgate.
Mas, antes de qualquer coisa, Antonieta é moradora da região central. Da família que, desde sempre, morou 'na beira do cemitério', como era conhecida a Travessa Monsenhor Trebaure, paralela ao Quintal Grande, hoje Avenida Mato Grosso. Da infância, ela se recorda de descer à Praça da Mandioca para buscar verduras no lugar onde hoje reivindica o protagonismo do povo preto.
"O centro histórico está vivo mais do que nunca, ele respira, ele fala para a comunidade “eu estou aqui”. Ele cobra o resgate, a preservação. Ele faz isso através da resistência das pessoas que estão aqui, das pessoas que ainda conseguem manter essa luta. Essa voz que clama pela melhoria do centro histórico é a voz do povo. A gente fala de coisa antiga, mas é a identidade, e um povo sem memória é um povo morto. Por isso a gente está no centro histórico, porque a gente tem memória. A memória do centro histórico de Cuiabá está mais viva do que nunca. Essa casa é reflexo disso. Resistiu, já foi tanta coisa, já vendeu nossos ancestrais e hoje nossos ancestrais estão muito felizes porque nós estamos aqui", diz.
Invocando o significado de Sankofa, Antonieta reforça que para construir um futuro melhor, é preciso conhecer o passado. Passado que na família de Armando Omais começou a mais de 10 mil quilômetros de Cuiabá, no Líbano. Aos 60 anos, Armando é remanescente da família de comerciantes que se instalou na Capital em buscas de melhores condições. Quando rememora o passado, as lágrimas lhe saltam aos olhos. Ao ser perguntando sobre o que se lembra do Largo do Rosário, emocionado, Armando diz: “Tudo. Brincar, trabalhar, ajudar meus pais, depois meu comércio”.
Dono de uma loja de artigos esportivos, Armando conta que os irmãos também eram comerciantes, mas hoje em dia não estão mais no ramo. A família toda terminou de se instalar em Cuiabá em 1960 e aqui começou a produzir frutos. A matriarca chegou com os cinco filhos e um ano depois, Armando nasceu.
“Então, esse laço com o centro vem disso tudo aí. Não quer dizer que a vida toda foi bom. Mas tudo que minha família teve e que eu tenho foi aqui”.
Ao contrário de Armando, a figurinista, produtora cultural e artesã da Casa das Pretas, Marry, não nasceu no centro histórico e chegou a trocar Cuiabá por Corumbá, no Mato Grosso do Sul, mas, anos depois, escolheu a Rua Engenheiro Ricardo Franco, nas proximidades da Praça da Mandioca, como morada.
Para Marry, morar no centro histórico é viver a cuiabania no cotidiano. "De manhã cedo emprestar açúcar, café, arroz mesmo, cebola, um emprestava pro outro, que não tinha”.
Nos figurinos que cria, Marry também exprime a cuiabania. As figuras lendárias, segundo ela, são grandes fontes de inspiração. O Minhocão que, conta a lenda, está preso nos fios do cabelo de Nossa Senhora, na Igreja Matriz de Cuiabá, é uma delas.
"Eu me inspiro mais assim nas roupas antigas. Principalmente no siriri e cururu, que sou mais nessa área. As roupas, as vestes. As figuras lendárias, que hoje está acabando. Hoje é difícil achar alguém que faz essas coisas, figuras lendárias, poucas pessoas fazem. Esse povo usa mais coisa de fora [...] coisa egípcia, italiana, gaúcha. Procura mais nessa linha de fora, do que do próprio Estado nosso, ou da própria cidade também”, comenta.
O brilho das fantasias carnavalescase dos vestidos de miss também rememoram o minério que deu origem à cidade: o ouro. Segundo a figurinista, nos dias de chuva, moradores da região ainda vasculham as proximidades dos casarões na procura de algum ouro que tenha se misturado com o barro das paredes.
O LADO OPACO
Marry e Armando falam ainda sobre os problemas que assolam quem empreende ou mora no Largo. Para Marry, o problema das drogas na região já foi pior. “Isso aí começou em 2015 até 2018 por aí, aí foi acabando. Muita polícia, muita briga. A polícia bateu em cima, ai acabou. Ai veio a pandemia. Agora que tá mais ou menos voltando”, pondera.
Para a figurinista, porém, isso nunca foi um problema: "Perigo existe em todo lugar. Quem sabe conviver com o povo, sabe conviver com qualquer um”, pontua.
As dificuldades do centro também nunca desistimularam Armando, mesmo tendo sido alvo da criminalidade reiteradas vezes.
"Já tacaram fogo em dois depósitos meus na minha vida. Um em 99 e outro quatro anos atrás ali na 7 de Setembro [...] Esses dias atrás tentaram arrombar de novo", diz ele ao relatar a falta de segurança na região.
A crescente das pessoas em situação de rua na localidade, segundo ele, também pode ser um problema para quem, de alguma forma, se irrita e acaba gerando represálias. Armando, porém, assim como Marry, aprendeu a se manter ali.
A droga, a miséria e a criminalidade são velhos conhecidos da região que tem como um de seus monumentos a estátua de três adolescentes mortos na chacina do Beco do Candeeiro. Foi na rua 27 de dezembro que Edgar Rodrigues de Arruda, 12 anos, Adileu Santos, 13 anos, e Reinaldo Dias Magalhães de 16 anos foram assassinados, no dia 10 de julho de 1998. Mais de 20 anos depois, ninguém foi responsabilizado.
A tese, que nunca foi confirmada pela Justiça, é de que os meninos em situação de rua tenham sido alvos de um grupo de extermínio formado por policiais militares.
O monumento em homenagem a eles, contudo, retrata cotidianamente problemas que persistem na região, mas não são os únicos.
O abandono do poder público e imbróglios judicias entre Poderes também assolam a região. É o caso da parte do largo do Rosário . O último morador do local, que fica em frente à Igreja de São Benedito, deixou a casa em fevereiro de 2022, pelo risco de desabamento. Todos os outros imóveis já haviam sido desocupados e destruídos. O morador, que ainda visitava a casa, viu ela rapidamente se tornar propriedade dos adictos do entorno do Morro da Luz.
Depois, nem ver pôde mais. No mesmo ano, o prefeito de Cuiabá, Emanuel Pinheiro (MDB) anunciou que fecharia o local com tapumes, um "paliativo" para esconder a destruição do patrimônio. Segundo Emanuel, a medida era a única possível porque o governador do Estado, Mauro Mendes (UB), seu eterno rival, se recusava a transferir a área para o domínio do município.
Mauro Mendes, por sua vez, garantiu a revitalização do local com as obras do BRT, ainda sem data para começar em Cuiabá.